segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Diário do Amazonas - 24 de agosto de 2015 "Solo de dança aborda abuso sofrido por ribeirinhos em RO", por Tiago Melo


Manaus - O solo de dança contemporânea ‘Recolon’, que mistura a modalidade de desfiguração com a temática da ‘recolonização’ dos ribeirinhos de Porto Velho, foi contemplada pelo Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna. A montagem do espetáculo, que está prevista para estrear em 2016, é assinada pelo artista manauara e estudante do curso de Teatro da Universidade do Estado do Amazonas Leonardo Scantbelruy.

Com interlocução das bailarinas Elisa Schmidt, de Florianópolis, e Gilca Lobo, de Porto Velho, o espetáculo tem como eixo norteador a desfiguração do intérprete, no caso, Leonardo, por meio da pasta de macaxeira. “A escolha da pasta de macaxeira é justificada pela sua ação alusiva ao remanejo e desfiguração do ribeirinho por conta das construções das usinas hidrelétricas em Porto Velho”, explicou o artista.

Segundo Scantbelruy, apesar de a pasta da macaxeira não ter sido sua primeira opção como agente desfigurante, ela acabou prevalecendo por motivos estéticos.

"Experimentamos primeiramente com a goma de tapioca, mas ela tinha um efeito muito efêmero, trocamos pela pasta e a decisão foi acertada. A pasta é maleável, ela nunca será a mesma coisa. Em cada apresentação ela assumirá diferentes formas, resultando em diferentes leituras por parte do público”, afirmou.

Inspirado pela série hibrida de pintura, fotografia, escultura e performance, intitulada ‘Transfiguration’, criada pelo artista Olivier de Sagazan, em 2001, na qual o artista, nascido no Congo, em 1959, propõe a desfiguração por meio da argila e tinta, Leonardo Scantbelruy conta que a temática para o espetáculo surgiu a partir de suas raízes e laços criados por Porto Velho no período em que morou no município.

Eu já tinha o argumento, que era trabalhar a questão dos ribeirinhos sendo devastados pelas usinas hidrelétricas, mas a forma de como isso seria abordado só me surgiu em setembro do ano passado, durante uma oficina ministrada pela Elisa (Schmidt) sobre desfiguração”, relembrou Scantbelruy, ressaltando que Elisa estudou cerca de três anos na França com o próprio Sagazan.

No momento, Scantbelruy conta que está trabalhando no processo de aprimoramento técnico e estético do seu espetáculo, que inclui, até mesmo, extensas e profundas pesquisas bibliográficas. “Através de vídeos gravados e enviados para a Elisa, estamos definindo qual a nossa delimitação, as questões corporais e as tendências que utilizarei na montagem final. Há também de se definir o diálogo da sonoplastia com a iluminação ainda”, contou o estudante.

Sobre o Prêmio Funarte, Leonardo disse estar honrado. “Ser contemplado pelo prêmio é algo único. Um prêmio é um dos pouco meios de um artista se manter ativo, produtivo e reflexivo”, concluiu.

Com estreia prevista para junho do ano que vem, em Manaus, Scantbelruy deverá seguir com ‘Recolon’ para Florianópolis e Porto Velho. E, a exemplo de Sagazan, o público pode esperar um espetáculo desconstrutivista, animalesco, filosófico e um tanto macabro.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Correnteza

Ou águas passadas até então.

Atualmente digo que Recolon é um solo do qual me propus a configurar, após ser atravessado por questões que assolaram a cidade de Porto Velho e arredores nos recentes últimos anos.

Quando tento acessar a memória para identificar os primeiros instintos criativos, encontro algumas suposições.

Certa vez, uma prosa com uma professora amiga me oportunizou a hipótese de que a instauração desse processo seria de origem histórico-familiar. Descendo de Barbadianos, que no início do século XX, em virtude da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, estabeleceram um elo com o Rio Madeira, fincando-se em Porto Velho, antes mesmo da emancipação do município, mais precisamente no Alto do Bode, nome popular do bairro Barbadian Town - local à beira-rio, próximo aos trilhos da Estrada de Ferro, povoado predominantemente por trabalhadores caribenhos.

Meu avô Ivan Walter Scantbelruy, filho de Charles Christopher Scantlebury, trabalhador braçal da estrada de ferro, se voltava de maneira expressiva ao Rio Madeira entre suas expedições fotográficas pelos interiores do Amazonas. Em meados dos anos 60, partiu de Nova Olinda do Norte juntamente ao restante da família, todos motivados pela ambição em ganhar dinheiro para construir uma casa na capital amazonense, engajando-se, assim, na itinerância fotográfica pelas beiras do Amazonas. Viajaram pelos rios Madeira, Canumã, Abacaxi, Paraná Urariá, Paraconi, Amazonas, Urucará, Uatumã, Solimões, Purus, e finalizando pelo Rio Negro, tendo Manaus como destino final. Por todos os dois anos de viagem, meu avô levava no toldo do barco um cavalo talhado na madeira, que anunciava a chegada do fotógrafo em cada comunidade à beira-rio. O cavalo de madeira costumava compor a fotografia, juntamente com painéis e indumentárias temáticas (praia de Copacabana, paisagens amazônicas, imagens bíblicas, de Iemanjá, entre outros).  

Meu tio Ivancy Scantbelruy relata que a chegada em cada cidade interiorana era um acontecimento, devido que naquela época a fotografia era inacessível a grande parcela da população, dessa forma, meu avô cumpriu um papel importante em seu ofício, democratizar o registro à história de muitos amazônidas. As maiores demandas eram os típicos quadros circundados que, por intervenção da pintura, as mulheres podiam ser providas joias de pérolas e os homens de terno e gravata.

Vale frisar que essa foi a única viagem de expedição fotográfica realizada por toda a família – meu avô, minha avó e seus cinco filhos -, mas meu avô, sozinho, já havia realizado outras viagens do mesmo caráter pelos mesmos e outros rios e interiores do Amazonas.

Minha mãe carrega na memória seus 10 anos de infância em Nova Olinda do Norte – cidade banhada pelo Rio Madeira - onde viveu dos dois aos doze anos de idade. A ida de minha família para Nova Olinda do Norte se deu em decorrência da visibilidade que o município obteve após a descoberta de Petróleo na região, somado a conflitos políticos sofridos por meu avô, que apoiara um candidato à prefeitura derrotado nas eleições. Tal comprometimento partidário dificultou sua ascensão profissional na cidade de Manaus.



Ressalto que em meados dos anos 70 minha família possuiu um sítio em Nova Olinda do Norte, onde a principal atividade era a plantação de macaxeira. Anteriormente ao período de plantio, o local serviu para o funcionamento do prostíbulo “Vai quem quer”, administrado pelo meu avô. Antes da partida para a expedição fotográfica rumo à Manaus, meu avô doou a localidade para a prefeitura, e desde então o local funciona como cemitério municipal de Nova Olinda do Norte. Só me inteirei da relação familiar com a plantação de macaxeira em abril de 2016, após encontrar alguns álbuns no porão de casa que acusaram o plantio de macaxeira por meio de algumas fotografias. Questionei a veracidade de tais evidências a alguns familiares que, naturalmente, confirmaram a atividade.


                            


Macaxeira é o elemento desfigurativo bruto eleito por mim após alguns experimentos cênicos de Recolon. As leituras híbridas entre raiz, terra e a alteração figurativa por meio da pasta de macaxeira se mostrou uma potencialidade a ser explorada, em harmonia com a preposição argumentada em Recolon: alteração ribeirinha.

Saber que minha família explorou fenômenos que, quase meia década depois, eu iria abordar artisticamente foi estarrecedor. Coincidência ou ciclo intermitente? Não sei ao certo.

Eu não tive ligação direta com o rio. Cresci em Porto Velho em um bairro distante da margem e não dependia dela para sobreviver. A presença do rio em meu imaginário se dá em alguns eventos pontuais no decorrer da vida: alguns passeios familiares pelos saudosos mirantes do bairro Arigolândia, uma visita ou outra na cachoeira de Teotônio, da paisagem da beira do rio como cenário para os fazeres teatrais do meu grupo, e de meia dúzia de viagens de barco de Porto Velho a Manaus, ou vice-versa.

O resgate mais próximo de "surgimento" que levo na memória é de 2010, tempo em que a cidade ficou fracionada, como num plebiscito. Parte dos cidadãos adesivavam a lataria de seus carros e de suas casas com escritos amarelos “Usinas já!” em um fundo azul-marinho. Lembro-me bem de alguns colegas de turma, acredito que da oitava série, quando estampavam suas apostilas com o tal dizer, criando um bordão popular na cidade. As opiniões comprometiam os relacionamentos humanos das mais diversas esferas, as pessoas eram divididas em uma seleta de “pró usinas” e de “contra usinas”. O tempo, acompanhado de fatos, mostrou da pior maneira qual doutrina detinha a razão.

Os portovelhenses foram ludibriados com promessas de crescimento sustentável por meio de licitação de obras que, supostamente, ofertariam melhores condições para as escolas, asfaltos, segurança pública, saúde, e todos os outros constituintes de uma sociedade utópica. Tinha-se inclusive o pensamento de que com as usinas na cidade, o término da construção de um viaduto na Zona Sul, seria concluso. Até o momento, nada.

Em casa, meu pai acreditava na boa fé de tais implementações. Já minha mãe, explosiva como ariana que é, se comportava como uma pessimista, e repetia veementemente o que mais tarde se consagraria numa espécie de profecia: Porto Velho não tem condições pra suportar essas construções, gente, isso é coisa de doido. A cidade vai inflar, vai vir peão de todo canto do Brasil que não vai ter onde morar, vai ficar sem dinheiro, vai se rebelar... Essas usinas vão acabar com tudo e o povo vai ficar fodido, escreve o que eu tô te dizendo” […] “Tá aí, dito e feito” disse minha mãe sobre os primeiros efeitos noticiados pelo jornal local.

Meio a andanças, fazendo teatro em distritos e interiores, pude notar uma atmosfera tensa em algumas localidades atingidas pelas usinas. Triunfo, Jaci-Paraná e Nova Mutum Paraná eram como chapas empoeiradas de concretos, ausentes de hamornia entre sujeito e espaço. Se havia cor, a mais colorida era cinza.

O prefixo “Nova” que antecede “Mutum Paraná” diz respeito ao remanejo sofrido pelos habitantes dessa mesma localidade, que ficou submersa por conta da cheia proporcionada pelo reservatório da Usina Hidrelétrica de Jirau. Da mesma forma ocorreu com Vila Nova Teotônio.

Deixei Porto Velho com as margens do rio tocando os pés sobre os paletes de madeira da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Era 15 de fevereiro de 2014, um dia antes de ir pra Manaus. Estava na praça da Estrada de Ferro, na companhia de poucos pares e de uma recente amiga: Ana.

Ana era hippie, e estava na praça vendendo artesanato. Ela havia me presenteado com um colar elaborado a partir de uma pedra olho de tigre. Ana se tornou minha amiga logo após notar meu enfado por uma iguana ter urinado em mim de cima da árvore. Ana veio me dizer aquilo seria sorte. Sorte de estar indo embora, talvez. Eu acabara de conhecê-la e não gostava de despedidas, apesar da promessa de que voltaria para revê-la – e para receber uma outra regalia: uma biografia de Renato Russo, emprestada – não avisei que era meu último dia na cidade. À medida em que papeávamos, a água foi nos expulsando dali e expulsando também o mostruário de Ana. Aquilo era só um presságio da maior cheia já registrada pelo Rio Madeira. Eu realmente tive a sorte de ser urinado pela iguana, partir um dia depois, e não testemunhar o estado que a cidade ficaria dali por diante.

Parti rumo a Manaus, havia sido aprovado no curso de Teatro pela Universidade do Estado do Amazonas. Parti em débito, e com fome. Um bom moço que por uma compilação de decisões do destino, deixou sua casa ser afogada sozinha. Os signos que me compunham haviam sido afetados e dilacerados. A exemplo do meu grupo de teatro, que se dedicava a ocupar os espaços daquela praça, um sítio histórico a beira rio, que marca a edificação do município. O lugar ficou de baixo d'água, bem como grande parte do centro da cidade, comunidade ribeirinhas, vilas de pescadores, e toda a margem do Rio Madeira e seus braços. A cheia foi tão vigorosa que afetou o sul do Amazonas, o estado do Acre e a Bolívia. Tudo por um suposto “erro de cálculo”.

A pensar na proporção dos atingidos e estragados – entre cidades, estados, vilas, casas, plantações, margens, vidas – notei que o tamanho da região norte do país não era equivalente ao espaço que a região era citada em pautas entre noticiários nacionais. A abordagem sulista para com o nortista é supérflua, nos destinam no máximo uma nota de rodapé ou uma chamada de 10 a 15 segundos. Ocorre que, de fato, existe uma zona geográfica de valor que compete as demandas nortistas a inferiores em relação ao sudeste e sul do país. Tal hipótese veio durante pesquisas da sonoplastia de Recolon, que se apropria de áudios de periódicos televisivos sobre o ocorrido, desencadeando em uma mixagem sonora desfigurativa. O total de áudios localizados por noticiários de exibição nacional é quase nulo.

Em Manaus, acompanhava com aperto as notícias e mídias veiculadas em relação à cheia, geralmente por jornais de web ou pelo facebook. Alimentava inconscientemente uma inquietação que viria a ser expressa em Recolon. Era indignante ver meu espaço de trabalho: a praça, inundada por uma água revolta, mas foi amedrontador presenciar, meses depois, situações de abuso e violência sofrida por famílias ribeirinhas.

Passei os últimos dois anos em uma inconstante, indo e vindo, entre Manaus e Porto Velho, vezes de avião, vezes de barco. Logo que voltei para Porto Velho, após a mudança para Manaus a água empoeirada havia baixado, o estrago ficou menos turvo e mais nítido. A cidade fedia a pitiú de peixe podre. O bairro triângulo virou lama, nada sobrou das antigas casas de madeira, estilo chateau barbadiano, da famosa arquitetura local das janelas que abrem para fora. As águas atingiram a BR-364, que ficou interditada, impedindo meu pai de trabalhar – ele visita e abastece com frios e laticínios alguns mercados de distritos e interiores. Só após o desbloqueio da BR-364 é que pude ir com ele a essas zonas de conflitos. A visão que tinha até então era de uma óptica central, vista da cidade, sem me ater aos reais danos causados e ao sofrimento dos afetados. E de fato, havia muita lama para escavar, como ainda há.

Volto a Manaus, mas com os afetos latentes nos conflitos presenciados na cidade de Porto Velho, tanto da área urbana quanto rural. Entre muitas programações culturais ocorridas na capital amazonense, oportunizei-me a prestigiar um espetáculo de dança contemporânea chamado Entre Terra, de Elisa Schmidt – contemplado com o Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2013.

As interfaces expostas por meio da desfiguração com argila, tintas e palhas, no trabalho de Elisa, me comunicada ao contexto vivenciado pela cidade de Porto Velho meio a devastação causada pelo complexo de usinas. Após o espetáculo, fui alimentado por um debate que referenciava provocações desfiguradas nas mais diversas linguagens artísticas. Elisa mencionava nomes como Francis Bacon, Antonin Artaud, Olivier De Sagazan. Este último, sujeito direto de pesquisa da bailarina Elisa Schmidt. A indagação que me persistia e me atravessava era: como pudera, algo externo, comunicar tanto interiormente?

No dia seguinte, concluindo a atividades propostas por Elisa Schmidt na cidade de Manaus, participei da oficina Experiência em Desfiguração. A falta de adesão, característica local de programação cultural a ser realizadas aos sábados pela manhã, propiciou uma vivência intimista com Elisa, que futuramente me renderia uma parceria de interlocução para algo que se batizaria de Recolon: uma re-colonização de exploração.

O meu estado naquele momento estava conturbado, o fazer artístico havia sido retirado do eixo e não emanava com a mesma frequência de quando fazia Teatro de Rua nas praças de Porto Velho. Em Manaus não encontrei a mesma liberdade nesse fazer, as praças manauaras possuem uma espécie de gerência e são necessários embates burocráticos para a realização de arte pública. Enfado.

Férias de final de ano. Mais uma escapada sentido a Porto Velho. Empenhei-me em pesquisar o processo de adaptação de ribeirinhos e sitiantes no período pós-enchente, visitei Vila Nova de Teotônio, (atual nome da Vila de Teotônio) comunidade centenária de agricultores e pescadores, a comunidade é mais antiga que a cidade de Porto Velho, e detinha um riquíssimo acervo histórico cultural. Arrancados de suas raízes, meio a promessas de um futuro próspero com a divulgação da Vila como ponto turístico, encontrei alguns moradores ribeirinhos e sitiantes conformados, talvez vencidos pelo cansaço. Em contraste aos engajados militantes do Movimento Atingidos por Barragens – Rondônia, que reivindicava assiduamente seus direitos e expunham suas denúncias aos poderes públicos competentes, além de organizarem assembleias pacíficas e democráticas em praças e outros espaços públicos, como Sintero e Mercado Cultural.

Residindo na beira da estrada de terra, em área de Vila Nova Teotônio, Seu Raimundo me inteira do ocorrido enquanto apresenta sua nova horta de macaxeira, ainda de poucos meses. Sua fala é saudosa. Na semana seguinte, no município de Candeias do Jamari - RO, a agricultora Zita me diz com apreensão e receio que tem da próxima cheia, que a deixou ilhada, e repete incessantemente que seu lugar é Candeias. Pergunto pela sua plantação macaxeira, ela me assegura que a safra é boa, mas que não comercializa e nem está interessada.

               

Em diálogo com Elisa pude expor a complexidade de minha relação com a cidade, e a invitei ao projeto, já tendo por cristalizado o argumento da proposta, porém não tinha certeza se era a dança de fato a linguagem veículo de tal expressão. Como elencado por Elisa no debate após o espetáculo Entre Terra, por vezes, o fazer transborda as linguagens, hibridizando a obra. Pelo menos foi o que ocorreu com Transfiguration, série de Olivier De Sagazan, artista estudado por Elisa.

Já havia participado de um Núcleo de Dança Contemporânea, pelo SESC Rondônia. Vivi um ano (2013) nesse coletivo que se desvelou sobre os estudos d'O homem vitruviano, de Leonardo da Vinci, considerando fatores do movimento, sistematizados por Rudolf Laban. Após tal experiência, a dança se deu pontual, se resumindo a aulas de ballet clássico e a prática de dança aérea por meio do tecido acrobático, já na universidade. Toda a minha prática até então era predominantemente o teatro de rua.

O olhar externo de Elisa me auxiliou na exatidão desse intuito, foi quando, de pronto, compilamos as pesquisas e elaboramos o projeto inicial, tentando viabilizar a vinda de Elisa para Manaus, para que pudéssemos, novamente, usufruir dessa conexão direta, livre de mídias, contatando corpo a corpo, como na oficina em setembro.

Eu em Manaus, Elisa em Floripa. Ansiávamos por um diálogo com um corpo geográfico presente e atido ao contexto em que estávamos abordando: um corpo portovelhense, sensível e beradeiro. Convidei Gilca Lobo a estar conosco mantendo o processo – afinal, Gilca já pesquisava o corpo ribeirinho para a dança.

Recolon é o embrião, eu, Elisa e Gilca emanamos nutrientes para seu desenvolvimento. O sistema adotado foi o seguinte: eu experimentava, registrava, tecia e as enviava todo o conteúdo. Foi assim com os primeiros experimentos cênicos, que começou com a goma de tapioca como elemento desfigurativo, partindo para a pasta de macaxeira, e então se cristalizando com a macaxeira em estado cru, de pasta e suas cascas, além da tinta à oléo Terra de siena queimada para compor as máscaras desfigurativas do ser. Elementos simbólicos que carregam e tentam instaurar raízes de um povo assolado pelo concreto e pela maquinaria, notando uma paisagem alterada e irreconhecível. A relação da beira com a construção das usinas.

O projeto foi aprovado com o Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2014, era e foi uma das únicas maneiras de viabilizar a pesquisa, interlocução e montagem do solo. O prêmio coincidiu com uma crise econômica - ainda vigente - que tardou demasiadamente o pagamento da parcela, incapacitando o desenvolvimento previsto para o processo, mas propiciando um tempo dilatado para balanço e reflexões sobre escolhas, abordagens e experimentos. Por meio do prêmio, além dos ensaios abertos e das apresentações - em Manaus, Porto Velho e Florianópolis -, será possível também realizar a interlocução de Gilca Lobo e de Elisa Schmidt, para um contato direto com o corpo que Recolon está tomando e se apoderando. Ações para um futuro próximo.

Visando aprimorar o processo, busquei na Residência Jovens Criadores no Amazonas – contemplada com o prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2013 – uma oportunidade na desenvoltura orgânica de Recolon. Francisco Rider, Thelma Bonavita e Chris Lauenbergue foram entidades de suma importância que colaboraram com cada artista residente imerso no desejoso Lugar Uma de Artes.

 

De minha última estada em Porto Velho, final de 2014 – início de 2015, obtive a impressão de que a cidade foi estuprada. As atividades artísticas e culturais não estão sendo feitas com o mesmo vigor. Reverberações de uma raiz histórica – cultural arrancada. O verde que já era pouco, se tornou ainda mais escasso. Caminhava por horas sem topar com uma árvore que me desse sombra. Na Estrada de Ferro, era notória a falta de administração pública. Do lado de cá do rio, costumávamos ver o sem fim de mata presente do lado de lá. Quando a luz se torna a treva, a eletricidade é símbolo de invasão.

As turbinas giram, os lucros preenchem os cofres privado e público, mas as ações mitigatórias não me eram notadas e de fato não contemplam boa parte dos assolados pela empreiteira. Nem mesmo a conta de luz foi a favor de quem proclamava apoio às usinas em 2010.

Reflexão de alguns anos de processo e eu não sei para quais águas essa correnteza vai me levar.

Leonardo Scantbelruy
Fevereiro de 2016
Maio de 2016